A Revolução e o Poder no Expresso do Amanhã


* Contém SPOILERS do filme Expresso do Amanhã e da série Expresso do Amanhã (2020)

A Locomotiva é sagrada… e Wilford é divino! Wilford é misericordioso!
– Filme Expresso do Amanhã

A primeira temporada de Expresso do Amanhã (2020) não é perfeita, mas é boa o suficiente para inspirar inúmeras reflexões sobre as nossas sociedades e sobre as ideologias revolucionárias que pretendem alterá-las. A sociedade criada dentro de um megatrem que leva os últimos sobreviventes da raça humana depois de uma glaciação repentina provocada pelo homem é um microcosmo da atual sociedade globalizada e da desigualdade social que permanece sendo uma de suas principais características.

A série é inspirada no filme Expresso do Amanhã (crítica aqui), produção sul-coreana de 2013 que foi um grande sucesso de crítica e que ganhou muitos fãs ao longo dos últimos anos. Nele, os últimos humanos vivos em um mundo congelado vivem separados em estritas classes sociais em um megatrem em movimento constante ao redor do globo. A trama mostra um esforço revolucionário dos fundistas (classe social mais pobre, isolada nos últimos vagões do trem) para tomar o poder na locomotiva e instaurar uma nova organização social no veículo. Liderados por Curtis (Chris Evans), o objetivo é alcançado, mas a realidade não é bem a que eles esperavam.

Uma popular teoria sobre o filme foi elaborada em 2018 por meio de um vídeo-ensaio que já possui quase dez milhões de visualizações e que defende a tese de que Expresso do Amanhã é uma continuação não-oficial do clássico filme infantil A Fantástica Fábrica de Chocolate, no qual o Senhor Wilford (Ed Harris) seria ninguém menos que Charlie (Peter Ostrum), o garoto que herda a fábrica de Willy Wonka (Gene Wilder). Parece implausível, mas, no mínimo, o diretor Bong Joon Ho (de Parasita, sobre o qual escrevi aqui) fez claras menções ao filme de 1971 (o que me lembra as referências feitas ao clássico A Sombra de uma Dúvida pelo diretor Chan-wook Park em Segredos de Sangue, sobre as quais comentei aqui).

Mas a história da série Expresso do Amanhã (2020) sofreu várias modificações para se adaptar ao novo formato e para surpreender os fãs do filme original. Nela, o líder fundista Andre Layton (Daveed Diggs) é recrutado pela chefe de hospitalidade Melanie Cavill (Jennifer Connelly) para investigar uma série de assassinatos, já que ele é o único detetive de homicídios à bordo do trem. Isso lhe dá a oportunidade de acessar mais partes do trem e de avançar seus planos de levante popular. Ainda no primeiro episódio, é revelado que quem de fato está no controle do trem não é o Senhor Wilford, mas sim a própria Cavill, que também é uma das engenheiras da Locomotiva Eterna.

Revolução

O protagonista Layton passa por um longo e cansativo processo de aprendizado ao longo de sua revolução. Para começar, ele fica ainda mais revoltado quando vê com os próprios olhos os luxos e regalias aos quais os passageiros da primeira e da segunda classe têm acesso. Mesmo os passageiros/moradores da terceira classe possuem muito mais qualidade de vida do que os fundistas, que, por terem embarcado sem passagens, vivem isolados nos últimos vagões e são tratados como se suas vidas tivessem menos valor.

Layton também descobre que mesmo uma revolução exige que sejam feitas alianças estratégicas. Ao invés de fidelidade inquestionável ou pureza ideológica, ele busca colaboração pragmática. Ele entende que só precisa destruir os inimigos que não conseguir conquistar. Desacordos e ressentimentos são deixados de lado em nome do objetivo principal que se pretende alcançar. É por isso que, além de insistir em conquistar o apoio de Till (Mickey Sumner) e Roche (Mike O’Malley), ele também conta com a colaboração momentânea de LJ (Annalise Basso), que talvez seja a maior sociopata à bordo do trem.

E talvez uma revolução seja um trabalho ideal para um sociopata, uma pessoa que irá usar e sacrificar vidas humanas como se fossem peões em um tabuleiro. Layton aprende isso de formas bem difíceis não apenas quando tem que lidar com as perdas humanas causadas pelo seu ataque inicial, mas também quando precisa tomar uma decisão moral que muito se assemelha ao dilema do bonde na filosofia. No fim das contas, o quão diferente de Cavill ele será se continuar nesse caminho?

O que ele também aprende é que uma revolução é um processo caótico e imprevisível, no qual ninguém realmente está no controle. Se a História nos diz algo é que durante uma revolução é fácil dizer quem a liderou inicialmente, mas é completamente impossível prever quem irá permanecer no poder depois dela. Isso vale tanto para a Revolução Francesa quanto para a Revolução Russa de 1917. A quantidade de sangue derramado em processos como esses nos leva a concluir que romantizar um revolução é como romantizar uma guerra, ou como enxergar o lado “belo” do sangue correndo pelas ruas.

É necessário dizer isso porque muitas pessoas ainda racionalizam as revoluções como formas válidas de mudanças no poder. Muitas delas não conhecem a fase do Terror e os Massacres de Setembro da Revolução Francesa; ou o terror após a ascensão de Stalin; ou o golpe dentro do Golpe Militar de 1964 no Brasil; ou a Operação Condor; ou os massacres na Indonésia de 1965 e 1966 (tratados no documentário O Ato de Matar e no livro The Jakarta Method); ou o genocídio cambojano; ou a Revolução Egípcia de 2011, que basicamente trocou um ditador por outro.

Pode-se discutir se os movimentos citados no parágrafo anterior foram necessários ou não, mas o que é inquestionável é que existem formas mais pacíficas e previsíveis de se implementar a alternância no poder. De todas as formas possíveis, as revoluções estão dentre as mais violentas e imprevisíveis. No final do filme Expresso do Amanhã, o Senhor Wilford revela que é ele mesmo quem incita as revoltas populares contra o seu poder, e ele o faz quando julga que uma significativa redução populacional é necessária. Para ele, uma tentativa de revolução não é nada mais do que um mecanismo de controle demográfico.

Poder

Um trecho da crítica de Expresso do Amanhã que escrevi em 2014 diz:

Wilford não possui um exército que o cerca ou algum fantástico sistema de armas/segurança. Morando sozinho no primeiro vagão (o que é uma clara referência aos 1% mais ricos do nosso mundo) e contando apenas com uma guarda-costas, sua principal arma é sua ideologia. Ele tenta convencer o nosso herói de que aquela organização rígida das classes do trem é necessária para a sobrevivência de todos. E mais do que convencer o protagonista, o raciocínio que ele utiliza é capaz de convencer o espectador. Sei disso porque já conheci várias pessoas que pensam de forma semelhante.

É isso o que diferencia Wilford de outros vilões que tentam levar seus adversários para “o lado sombrio”. Ele não oferece apenas riqueza ou poder, mas sim uma explicação racional para aquela realidade e porque ela deve ser mantida.

O Senhor Wilford da série só vai aparecer na segunda temporada (interpretado por Sean Bean, como pode ser visto nesse teaser), mas sua presença é sentida durante todos os episódios da primeira. Não como um personagem, mas como uma ideia. Melanie Cavill, que é quem adota a tática descrita acima, conseguiu desembarcar Wilford, o homem; mas Wilford, a ideia, permanece à bordo.

E essa é uma ideia que permanece mais forte do que nunca. Para manter o poder, Cavill cria um Wilford recluso e inalcançável, dizendo que ela é a única que conversa diretamente com ele e fazendo sua voz ser ouvida por meio de mensagens gravadas, que são reproduzidas no sistema de anúncios do veículo. Dessa forma, enquanto é ela quem toma todas as decisões importantes no trem, é Wilford quem leva o mérito e ganha o apoio popular. Mais que isso, é Wilford quem faz os passageiros das duas primeiras classes se sentirem cuidados e protegidos.

Se o próprio Wilford realmente estivesse no trem interagindo com os passageiros, provavelmente sua popularidade seria bem menor. Mas é com essa popularidade inflada e um status de lenda que ele retorna para complicar significativamente a trama da segunda temporada.

É possível ver uma demostração do poder dessa lenda na reação da personagem Ruth Wardell (Alison Wright) à notícia de que Wilford não apenas não está no trem, mas que provavelmente está morto. Ela segue em negação até o momento no qual ela mesma visita os aposentos da locomotiva e não encontra Wilford ou qualquer sinal dele. O sentimento que ela tem por Wilford não é de admiração ou reconhecimento, mas sim de fé e devoção. Mesmo diante dessas revelações que abalam os alicerces do seu sistema de crenças, sua fidelidade canina a Wilford jamais se abala.

O que ela não entende é que o Wilford que ela adora simplesmente não existe. O Wilford que ela ouviu e admirou nos últimos sete anos não era nada mais do que um personagem criado por Cavill para manter o controle. E o Wilford do mundo real, que agora sabemos que está vivo, não tem nenhuma obrigação de corresponder à imagem que foi criada dele durante a sua ausência. Sendo assim, a fé cega de Wardell está agora depositada em um homem que provavelmente pensa apenas no benefício próprio e que está há sete anos planejando uma vingança.

O que Wardell nos revela é a necessidade humana de ter ordem e controle, ou, pelo menos, a percepção deles. É a necessidade de acreditar em uma força superior, divina ou humana, que tudo garante e que tudo provê. Uma mão benevolente que representa uma autoridade paternal e protetora, que tudo sabe, que tudo pode e que de tudo cuida. Como um pastor, é ele quem indica por onde o rebanho deve ir, como o rebanho deve pensar e como o rebanho deve agir. Isso tira do rebanho uma boa parte de sua liberdade, mas também tira uma boa parte de sua responsabilidade.

As ditaduras não surgem a partir do desejo de uma pessoa ou de um grupo de pessoas de terem poder absoluto, mas sim do desejo de parte da população em ser governada por alguém com poder absoluto. As pessoas querem algo simples e fácil de entender, e não os complexos mecanismos de qualquer democracia direta ou representativa. Elas querem um “rei” que elas possam admirar e que resolva os problemas dando ordens simples e diretas. Se funciona nos filmes e na TV, por que não funcionaria na vida real?

A democracia nos dá condições de implementar uma pacífica alternância de poder, sem conflitos armados ou derramamento de sangue. Mas ela ainda não é perfeita e segue em constante processo de melhoria. Para alguns, suas imperfeições são suficientes para justificar uma revolução (tanto à esquerda quanto à direita) e recomeçar tudo zero, mas esse é um processo que ocorre ao longo de gerações e que não responde bem a ímpetos imediatistas.

Layton já estava prestes a sentir o peso de se começar um sistema de governo democrático do zero, mas, com a chegada de Wilford, ele ganha a “simplicidade” de um inimigo que precisa ser derrotado e já não precisa lidar com a complexidade de conciliar as demandas conflitantes dos muitos passageiros do Expresso do Amanhã.

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