A Piada Mortal no Centro de Watchmen


Até onde conseguimos discernir, o único propósito da existência da humanidade é o de jogar uma luz de significado sobre a escuridão do meramente existir.
– Carl Gustav Jung, Memórias, Sonhos e Reflexões

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A adaptação cinematográfica da graphic novel Watchmen foi um mediano sucesso de crítica e público, mas falhou em realmente adaptar os temas da história escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons. Superficialmente, está quase tudo lá, mas algumas camadas estão faltando. O que tornou a obra literária original tão grandiosa foi o nível de detalhamento no qual Moore entrou para construir o seu mundo e seus personagens, incluindo artigos de revista, relatórios técnicos e capítulos de livros daquela versão alternativa do Século XX. O autor também incluiu algumas citações famosas no final de cada capítulo, e algumas delas aparecerão ao longo desse post.

O formato cinematográfico fez com que parte da mensagem fosse perdida. Uma prova disso é como muitos espectadores ainda consideram Rorschach como a grande bússola moral da história, já que ele foi o único Watchmen a não se entregar ao plano genocida de Adrian Veidt/Ozymandias. Diante de um desfecho tão sombrio, é normal que as pessoas busquem um fio de esperança, mesmo quando nenhum existe. Ao invés de um Batman, Rorschach está muito mais próximo de um Travis Bickle (Robert DeNiro), protagonista de Taxi Driver.

Os momentos finais de Taxi Driver mostram como mesmo um sociopata instável e violento como Bickle pode ser considerado um herói por uma sociedade desesperada por figuras heroicas. Solitário, alienado do convívio social e se considerando superior aos “vermes” que ele vê como uma infecção, seu extremismo o leva a realizar um massacre em um bordel que explorava menores de idade. A questão é que, ao invés de um bordel, ele também poderia ter assassinado um político ou atirado contra pessoas que possuem uma visão de mundo diferente da que ele defende. Bickle se vê como um soldado defensor da dignidade e dos bons costumes, e sua eterna busca por um inimigo faz de muitos inocentes alvos em potencial.

Já na primeira página de Watchmen, Rorschach apresenta pensamentos muito similares aos de Bickle:

As ruas são grandes bueiros cheios de sangue e quando a drenagem finalmente transbordar todos os vermes vão se afogar. A sujeira acumulada de todo o seu sexo e matança vai espumar até suas cinturas e todas essas prostitutas e políticos vão olhar para cima e gritar “salve-nos!”, e eu eu responderei “não”.

O furor justiceiro de Rorschach lembra a busca por vingança do protagonista de um dos Contos do Cargueiro Negro, uma história dentro da história que serve como uma analogia para os temas centrais de Watchmen.

Nele, o capitão de um navio afundado pelos demônios do fantasmagórico Cargueiro Negro acredita que a embarcação amaldiçoada está indo em direção a sua cidade natal para matar sua família. Desesperado, ele constrói uma jangada a partir dos corpos dos marinheiros mortos e parte com a intenção de alertar a população. Porém, durante o caminho, as alucinações causadas pelo seu já decadente estado mental (além de beber água salgada, ele está constantemente na presença dos gases tóxicos liberados pelos cadáveres em putrefação) o levam a acreditar que os fantasmas já devem ter dizimado todas as pessoas que ele conhece e amava, inclusive sua esposa e filhas.

Ele segue a sua jornada decidido a vingar o massacre dos habitantes da sua cidade e acabar com a tripulação do Cargueiro, a começar por aqueles que mataram a sua família. Uma vez que chega ao seu destino, o capitão vai direto para sua casa e ataca uma figura que se escondia nas sombras. Quando ele finalmente percebe que está matando a própria esposa diante de suas duas aterrorizadas filhas, já é tarde demais. Ao invés de atacar a cidade, os ocupantes do Cagueiro Negro apenas esperaram que um dos mais ilustres habitantes do local também se tornasse um “demônio” ensandecido e se juntasse a eles para aterrorizar os sete mares.

Aqueles que lutam contra monstros devem se cuidar para que eles mesmos não se tornem monstros. E quando você olha por muito tempo para dentro de um abismo, o abismo também olha para dentro de você.
– Friedrich Wilhelm Nietzsche, Além do Bem e do Mal

Veja que não foram os tripulantes do Cargueiro Negro que levaram morte e sofrimento para a cidade. A ameaça causada pela embarcação era real, mas foi um dos heróis locais que a consumou. Em sua ânsia por combater os demônios homicidas, o capitão perdeu a perspectiva do mundo ao seu redor e passou a enxergar inimigos por todos os lados. No final, o único demônio homicida que adentrou a cidade foi ele próprio. Cego pelo medo e por um ódio irracional, ele destruiu com as próprias mãos tudo aquilo que ele havia jurado proteger.

Essa é a grande “piada” à qual Edward Blake/O Comediante se refere depois de descobrir o plano sinistro de Veidt. Enquanto muitos ainda esperavam que seus heroicos guardiões os protegessem, um deles arquitetava a morte de milhões de pessoas em nome de uma elusiva “paz mundial”. O grande Ozymandias havia jurado proteger a humanidade e estava disposto a exterminar parte dela para tal. Isso uniria os sobreviventes em prol do combate a uma ameaça fictícia, evitando assim a hecatombe nuclear anunciada pelo Relógio do Juízo Final. Um plano perfeito, a não ser pelas milhões de vidas interrompidas ou traumatizadas por seu terrível crime contra a humanidade.

E eu estou acordado enquanto o amanhecer surge
Apesar do meu coração estar sofrendo
Eu deveria estar brindando a amigos ausentes
Ao invés desses comediantes
– Elvis Costello, The Comedians

A técnica de manipulação utilizada por Veidt é semelhante à utilizada pelo partido fascista que governa a Inglaterra no filme V de Vingança, que também é baseado em uma obra de Alan Moore. Para ser alçado ao poder, seus integrantes realizam um gigantesco ataque biológico contra o próprio país, matando aproximadamente 100.000 pessoas e culpando um grupo terrorista. A onda de caos e medo provocada pelo ataque faz com que a população caia no discurso do extremista Adam Sutler (John Hurt), que é eleito e elevado a Alto Chanceler, dominando completamente os poderes executivo, legislativo e judiciário do país, além de também comandar a igreja oficial do Estado.

Na graphic novel original, o cenário político que permite a ascensão de um Estado policial é causado por uma guerra nuclear que deixou boa parte do mundo inabitável e caótica. No mundo real, a História nos mostra que a sensação de insegurança causada por crises políticas e depressões econômicas é que leva as pessoas a escolherem certos grupos como vilões e recorrerem a figuras extremistas para lidar com eles. Procura-se heróis e políticos que se apresentem como durões, infalíveis, incorruptíveis e superiores. Mas quando eles também se tornam tiranos, quem nos protege dos nossos protetores?

Às vezes, nós temos a impressão de que um objeto está prestes a cair e fazemos um movimento brusco para tentar evitar a queda, mas acabamos tornando-a ainda mais violenta. Em algumas dessas vezes, é possível perceber que o objeto estava perfeitamente seguro e foi o movimento brusco precipitado por um temor infundado que causou o acidente. Em outras palavras, foi o medo do problema que o causou, em um claro caso de profecia autorrealizável. Assim como no caso do Cargueiro Negro, os danos mais graves não foram causados pela ameaça em si, mas sim pelo medo e desespero causados por ela.

A liberação do poder atômico mudou tudo, exceto a nossa forma de pensar… A solução para esse problema está no coração da humanidade. Se eu soubesse disso, teria me tornado um relojeiro.
– Albert Einstein

Mas enquanto Alan Moore desconstruía o mito dos super-heróis com Watchmen, Frank Miller se agarrava à ele com sua obra O Cavaleiro das Trevas. Nela, Batman é apresentado como o mais durão e incorruptível dos heróis, enfrentando um governo altamente corrupto que contava com a colaboração do Superman. Segundo o próprio autor: “Em grande parte, procurei usar a escalada da criminalidade ao meu redor para retratar um mundo que precisava de um gênio obsessivo, hercúleo e razoavelmente maníaco para pôr as coisas em ordem.”

Note que esse é o mesmo tipo de pensamento que, alimentado pelo medo e pela ansiedade, leva as pessoas a elegerem figuras violentas e autoritárias para impor ordem na sociedade. Mas se tais figuras também se tornarem tirânicas, iremos escolher outras figuras violentas e autoritárias para derrubá-las? Quando esse ciclo termina? Não seria melhor nos comprometermos com a ideia do Estado de Direito? Esse ciclo de autoritarismo apenas conformaria a visão central de uma das frases mais famosas do filme Batman: O Cavaleiro das Trevas: “Ou você morre um herói, ou vive o suficiente para se tornar o vilão.”

À meia noite, todos os agentes e os super-humanos
Vão para as ruas e prendem todos aqueles que sabem mais do que eles
– Bob Dylan, Desolation Row

Mas Moore também escreveu uma das mais famosas histórias do Homem-Morcego. Em A Piada Mortal, Batman enfrenta uma das versões mais sádicas e cruéis do vilão Coringa. Porém, na cena final, ao invés de dar-lhe mais uma surra e entregar o criminoso para as autoridades, Batman se oferece para ajudá-lo a se reabilitar. O palhaço recusa e conta uma piada sobre dois loucos tentando escapar de um hospício, dando a entender que tal acordo entre ele e Batman não seria nada mais do que um louco tentando curar o outro.

O Homem-Morcego não apenas entende a piada como também cai na gargalhada na companhia do palhaço homicida. Eles finalmente percebem o quanto possuem em comum e que representam apenas os lados opostos de uma mesma moeda. Os dois começaram suas estranhas “carreiras” (um como herói e o outro como vilão) depois de eventos traumáticos que deixaram profundas cicatrizes psicológicas. Ambos reagem de forma extrema a esses traumas e se tornam figuras teatralmente performáticas: um pintado de palhaço e o outro vestido de morcego.

O que pode nos levar à pergunta: de quais piadas os nossos heróis riem quando ninguém está olhando?

Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Olhem para a minha obra, ó poderosos, e desesperem-se!
– Percy Bysshe Shelley, Ozymandias

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