A Máquina do Ódio: Como as Democracias Nascem


Os lábios arrogantes
não ficam bem ao insensato;
muito menos os lábios mentirosos
ao governante!
Provérbios 17:7

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Em A Máquina do Ódio: Notas de uma Repórter sobre Fake News e Violência Digital, a jornalista Patrícia Campos Mello documenta sua perspectiva e sua experiência depois de se encontrar no olho do furacão das fake news no Brasil. Muitos dos fatos relatados podem não ser novidade para quem acompanhou suas matérias na Folha de S.Paulo, mas o livro também traz os bastidores de seu trabalho e os efeitos dos ataques que ela sofreu tanto sobre sua vida profissional quanto sobre sua vida pessoal.

Mais que isso, A Máquina do Ódio inclui a perspectiva da jornalista sobre o cenário internacional, uma vez que ela também cobriu eleições nos Estados Unidos e na Índia. Sobre os EUA, o livro também não apresenta muitas novidades para quem já vive grudado nas notícias, a não ser por alguns detalhes de bastidores. Além de reportar o caso da Cambridge Analytica (como mostrado no documentário Privacidade Hackeada, sobre o qual escrevi aqui), a autora também fala sobre Steve Bannon, figura que mantém relações com autoridades brasileiras e que possui muito menos influência do que sua projeção na mídia dá a entender.

É sobre a Índia que o relato fica mais surpreendente e alarmante: o país de 1,3 bilhões de habitantes está mergulhado em um pesadelo de manipulação e ataques virtuais que já chegou a causar milhares de mortes. Principal beneficiado pelas ondas de notícias falsas, o governo de Narendra Modi chegou ao ponto de distribuir celulares baratos como parte de um programa assistencialista. Os dispositivos já vinham com um aplicativo do governo para coleta de dados, que seriam posteriormente utilizados para disparar anúncios microdirecionados (ou seja, personalizados de acordo com as inclinações políticas e religiosas do eleitor).

As histórias de bastidores contadas por Mello também servem como exemplos práticos da vida dos jornalistas investigativos e dos riscos aos quais eles se expõem em busca das informações. A repórter conseguiu acesso a eventos exclusivos, ficou de “tocaia” nas proximidades da casa de uma possível fonte, lidou com um contato que se tornou agressivo e sofreu calúnias e ameaças devido ao trabalho que estava realizando. Em outras palavras, ela teve que lidar com toda a agressividade de seres humanos determinados a se manterem isolados da realidade.

Os Donos da Bola

Um dos relatos mais assombrosos contados em A Máquina do Ódio diz respeito a como a Hungria de Viktor Orbán conseguiu praticamente acabar com a imprensa livre e independente do país. Empresários apoiadores do presidente compraram a grande maioria dos órgãos de imprensa que ainda ousavam criticar o presidente e suas políticas. Se os húngaros quiserem ter acesso a conteúdo jornalístico independente hoje, eles precisam recorrer a um pequeno jornal com tiragem de vinte mil exemplares.

Líderes como Orbán, Donald Trump e Jair Bolsonaro parecem não possuir maturidade o suficiente para lidar com críticas. Parecem se considerar reis absolutistas, como se criticá-los fosse equivalente a criticar a própria pátria. Para eles, quaisquer críticas são atos de traição, mesmo quando elas vêm de seus próprios aliados e apoiadores. Se eles cometem erros e a imprensa os reporta, a culpa pelo problema é da imprensa. Assim como Nicolás Maduro e Daniel Ortega, eles sempre preferem atirar no mensageiro.

Esse é um comportamento comum em líderes de seitas, como David Koresh e Jim Jones. Ambos exigiam que seus seguidores considerassem apenas eles próprios como fontes de notícias e informações sobre o mundo em geral. Para que o controle que eles tinham sobre os seguidores fanáticos nunca enfraquecesse, Koresh e Jones precisavam retirar de suas “ovelhas” as capacidades de terem perspectivas mais amplas e de questionarem o líder. No final, ambos preferiram matar seus seguidores do que perder o controle sobre eles.

Um ponto que A Máquina do Ódio poderia ter explorado mais a fundo é o da realidade dos funcionários das agências de “marketing” responsáveis por parte dos trolls das redes sociais. Enquanto muitos dos envios são automatizados, outros dependem de operadores humanos para fazerem os perfis falsos parecerem reais para o público alvo. O único desses com os quais Mello conseguiu contato foi o problemático Hans River do Rio Nascimento, que viria a acusá-la falsamente de ter oferecido sexo em troca de informações.

A mentira de Nascimento foi explorada ao máximo pelas fiéis “ovelhas” bolsonaristas e pelo próprio Bolsonaro, que a repetiu de forma vulgar diante de câmeras e está sendo processado por isso. Nos grupos de WhatsApp, a torcida foi ao delírio.

Torcida Desorganizada

Torcer por um time de futebol não é um ato racional. O amor pelo time não é por uma questão de números, ou de ídolos, ou de cores, ou de símbolos. Independente do motivo inicial que leva uma pessoa a torcer por um time ainda durante a infância, os motivos posteriores não são nada mais do que tentativas de se racionalizar aquele sentimento. O sentimento vem antes, a racionalização vem depois. O mesmo vale para o tipo de política que figuras como Modi e Bolsonaro vêm incentivando.

Mello comenta sobre isso em A Máquina do Ódio. Depois que os robôs e fakes criam e distribuem o material de propaganda, os seguidores reais se veem na obrigação patriótica de compartilhar o conteúdo que avança a narrativa do seu “time”. Não é que eles simplesmente acreditem naquilo, mas sim que eles querem que aquilo seja verdade. E se pessoas o suficiente acreditarem, é como se fosse. Ao invés de apoiadores políticos, tem-se fãs. Ou fanáticos.

Essa resenha do livro Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism, da autora Anne Applebaum, resume muito bem essa nova realidade:

O que vemos em países como a Polônia e os Estados Unidos é que a democracia de cidadãos foi substituída pela democracia de fãs. Enquanto para um cidadão liberal a prontidão em apontar e corrigir os erros de seu próprio partido é um sinal de altíssima lealdade, a lealdade dos fãs é entusiástica, irreflexiva e inabalável. Fãs apaixonados, com suas capacidades críticas desligadas, são vitais para que os populistas entendam a política como um jogo de lealdade: a animação deles reflete um senso de pertencimento. “Confie mas verifique” é substituído por adoração barulhenta. Aqueles que se recusam a aplaudir são traidores, e qualquer constatação óbvia se torna uma declaração de pertencimento.

A resenha também afirma que “quando participantes políticos se tornam fãs, seu objetivo principal é o de garantir que seus oponentes jamais cheguem ao poder”. É por isso esse modus operandi é tão atrativo para o líder populista: ao manter sua base de apoio fiel e atiçada, ele não precisa se preocupar em fazer um bom trabalho ou em entregar resultados. A única coisa que ele realmente precisa fazer é escolher adversários para culpar pelos fracassos e deixar a multidão raivosa atacá-los.

Mello conclui A Máquina do Ódio em uma nota cautelosamente otimista, apontando para o fato de que a busca por informações confiáveis durante a pandemia de COVID-19 tem atraído parte da população de volta para o jornalismo profissional. Mas, nesse cenário, onde ficariam os fanáticos irredutíveis, que são capazes de morrer da doença sem jamais questionar a capacidade de seus líderes? Como convencê-los a levar em conta o jornalismo profissional?

Há uma forma mais pessimista de se fazer essa pergunta: o que poderia ser dito para um torcedor fanático para levá-lo a abandonar o time do coração?

Como as Democracias Nascem

Em A Máquina do Ódio, Mello também faz várias autocríticas sobre o papel da imprensa nesse cenário e como muitas colunas de opinião tentam simplesmente desclassificar esses movimentos de “torcida”. Ela lembra que essas pessoas inflamadas possuem demandas autênticas e precisam ser ouvidas. A questão é saber como engajá-las não apenas no aspecto intelectual, mas também no emocional. Para realmente inseri-las no processo democrático, é preciso partir das realidades nas quais elas já estão inseridas.

Até os anos 2010, por mais que o voto já fosse universal há algum tempo, uma boa parte da população seguia sem voz como agente político no dia a dia. Na prática, a pouca atividade política que essas pessoas exerciam ocorria apenas no dia do voto ou por meio de protestos de rua. Porém, com a introdução dos smartphones e do WhatsApp, uma grande massa espectadora passou a se tornar transmissora de conteúdo político. Pela primeira vez na História, as bases da pirâmide social estão fazendo suas vozes serem ouvidas.

Toda a máquina política estabelecida anteriormente foi criada com pouquíssima participação dessas bases. Elas nunca participaram de discussões sobre o Estado de Direito ou sobre a separação de poderes. A única coisa que elas sabem é que “isso tudo o que está aí” não está funcionando para elas. E dentre as poucas formas de organização popular que elas conhecem estão as torcidas esportivas e as instituições religiosas. Elas buscam a representatividade de um craque da bola (ou de um pastor) para guiar o time (ou a congregação) rumo ao sucesso.

Muitas delas não querem ou não podem se dar ao luxo de gastar um grande esforço cognitivo em política ou em questões nacionais. É muito mais simples escolher uma figura messiânica para resolver todos os problemas do país, enquanto elas podem se preocupar apenas em trabalhar e em viver a vida em busca da felicidade. E se a tal figura messiânica pede poder absoluto, que assim seja. Para essas pessoas, a maior parte dos nossos processos eleitorais sempre foram muito mais concursos de popularidade do que embate de propostas políticas.

Elas também nunca tiveram uma formação ética e nunca lhes foi explicado os princípios do jornalismo profissional e apartidário. Pode-se dizer que, no momento, essa massa torcedora está embriagada pelo poder. Pela primeira vez, esses cidadãos podem se sentir como manipuladores do discurso público. Eles não se consideram meros seguidores, mas sim cúmplices do “genial” líder populista. Não se veem como ovelhas, mas sim como lobos. O que eles ainda não entenderam é que, em última instância, o líder populista é fiel apenas a si próprio.

Essa realidade lembra uma fala do filme O Informante, de 1999: “São pessoas ordinárias sob uma pressão extraordinária, Mike. O que diabos você esperava? Graça e consistência?”

A principal proposta de Mello para lidar com essa situação é aumentar a transparência do processo jornalístico, mostrando para a população como as apurações são feitas e como a preocupação do bom jornalista está sempre em publicar as versões mais equilibradas dos fatos. Isso pode vir acompanhado de uma formação ética e civil, o que ajudaria a melhorar a qualidade e expandir o alcance das nossas democracias.

O atual ímpeto autoritário é muito menos um retrocesso e muito mais uma fase intermediária pela qual a democracia precisa passar para se aperfeiçoar. O processo democrático sempre foi de domínio de elites econômicas e acadêmicas, o que o torna basicamente insustentável. Foi assim que chegamos no atual estágio de alarmante desigualdade social e exclusão política. O grande desafio é como acelerar o processo de maturação desses novos agentes políticos, de forma que não seja necessário gastarmos várias gerações para aprender que a mentira e a manipulação não são formas saudáveis de se atuar politicamente.

Quem pratica a fraude
não habitará no meu santuário;
o mentiroso não permanecerá
na minha presença.
Salmos 101:7

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